Resumo — Neste artigo é apresentado o conceito de certificado de energia renovável do padrão I-REC, trazendo uma introdução com as motivações para a sua existência e uma explicação inicial sobre a sua estrutura de funcionamento. Este tema faz parte dos estudos do projeto da ANEEL P&D, Código 0064-1059/2019, registrado como “Plataforma para Operação de Balcão Organizado de Comercialização de Energia”, e, publicamente, Projeto AES Brasil de Energy Intelligence, realizado em conjunto pelas empresas Fohat Corporation e AES Brasil. Além dos conceitos iniciais, posteriormente é descrito um panorama local do mercado brasileiro de I-RECs e um panorama global do mercado de certificados de energia, apontando-se as possíveis vantagens na adoção da certificação I-REC em detrimento de outras. Finalmente, encerra-se trazendo uma visão dos desafios a serem enfrentados em nível mundial em termos de tecnologia e de contabilização; e, em nível nacional, em termos de infraestrutura de mercado.
Palavras-chave – Certificado de Energia Renovável. Mercado. Energia. Sustentabilidade. I-REC.
I. Introdução
Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu adotar 17 pontos para o desenvolvimento sustentável. Todos os países-membros acordaram em trabalhar nessas metas para que, até 2030, elas sejam atingidas em sua totalidade [1].
Dentre esses pontos, o número 7 trata especificamente da questão energética – com a meta de que todos tenham energia acessível, confiável, sustentável e moderna [2]. Essa meta possui 5 alvos e 6 indicadores. O alvo 7.2, conforme especificado pela ONU, cita que os países devem “até 2030, aumentar substancialmente a parcela de energia renovável na matriz energética global”, medido pelo indicador “parcela renovável da energia final consumida”.
Esse compromisso foi reafirmado no chamado “Acordo de Paris”, ratificado em 2016, quando as nações signatárias se comprometeram em assegurar que a temperatura média global tenha um aumento menor que 2°C em relação a níveis pré-industriais, além de estabelecer a obrigatoriedade do registro das emissões por parte dos países, além de abrir portas para o comércio de carbono entre nações [3].
Informações sobre o Projeto de P&D: ‘0064-1059, Plataforma para Operação de Balcão Organizado de Comercialização de Energia’; Segmento C; Código Subtema OP0X; Outros; ‘AES Brasil’, ‘Fohat Corporation’ ‘R$ 3.420.560,00’.
Na mesma ótica da sustentabilidade, há a preocupação com a emissão dos gases de efeito estufa. Desde 1998, o Protocolo GHG existe para entender, quantificar e gerenciar as emissões desses gases, sendo compatível com os métodos de quantificação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) [4], órgão da ONU destinado a gerenciar o tema ¨ mudanças climáticas¨ [5].
Dentro do protocolo GHG, há as chamadas emissões do ¨Escopo 2¨, que são as emissões associadas a energia adquirida por uma organização, sendo esta comprada ou então trazida para dentro de seus limites organizacionais [6].
Tanto pela questão dos objetivos sustentáveis da ONU, quanto pela contabilização do protocolo GHG e pelo Acordo de Paris, percebe-se que há uma preocupação com a questão de geração de energia e suas emissões.
No entanto, a energia não é um ativo tangível e facilmente de ser rastreado. Quando um elétron é gerado em uma dada usina, ele flui através dos fios e entra no sistema elétrico, que funciona como um grande reservatório de energia, onde todos os elétrons se misturam. Não há como discriminar ou selecionar um grupo de elétrons no consumo dessa energia que flui pelo sistema elétrico nacional. Como a energia consumida pelo comprador não necessariamente foi gerada apenas pela fonte contratada, é impossível identificar a origem da energia consumida – ainda mais com as fontes intermitentes ganhando mais espaço.
Para conseguir resolver essa questão, foi criado o I-REC (International Renewable Energy Certificate), que se trata de um certificado de energia renovável internacional. Cada MWh gerado por uma fonte renovável certificada dá direito à geração de um certificado que corresponde a 1 MWh de energia limpa. Desse modo, um gerador possui dois ativos: a energia elétrica gerada e o respectivo certificado correspondente a mesma. Contudo, para que um consumidor de energia possa contabilizar a energia limpa em seu relatório de sustentabilidade, por exemplo, ele deve possuir a quantidade necessária de certificados de origem para cobrir o seu consumo. É justamente isso que materializa o processo de compensação, isto é, não importa a origem da energia consumida por esse consumidor, conquanto que ele o compense com a aquisição de certificados de origem. A compra de certificados pode ser, também, realizada de maneira voluntária, sem necessariamente ter relação com metas de sustentabilidade ou obrigações legais, por exemplo.
O I-REC Standard Foundation, organização baseada na Holanda, é o responsável global pela Emissão e Aposentadoria (consumo) dos I-RECs. Dentre os países do mundo que participam do padrão I-REC, pode-se citar a China, o Brasil, a Índia e o México. Os Estados Unidos e a União Europeia, por sua vez, possuem cada qual a sua própria certificação, REC e GO, respectivamente.
Na Figura 1, pode-se visualizar 4 diferentes tipos de Certificados de Atributos de Energia (EAC, sigla em inglês), entres os quais se encontra o I-REC.
Figura 2. Exemplo de certificado I-REC.
II. Panorama Atual de Mercado
Falando-se de Brasil, o mercado de certificados de energia renovável vem passando por um crescimento rápido nos últimos anos. A começar por temos por aqui, duas certificações: o REC Brazil e o I-REC.
O REC Brazil é o nome de uma certificação que atende outros critérios de sustentabilidade, além dos definidos pela certificação da I-REC Standard Foundation, que chegou depois. Para uma usina ser elegível a emitir certificados com o selo REC Brazil, por exemplo, ela deve atender no mínimo 5 dos 17 objetivos sustentáveis da ONU [10].
Já o Instituto Totum [7] – emissor do I-REC para o Brasil – informa que o país registrou 244 MWh emitidos em 2014, aumentando em 55 vezes a quantidade em 2015 (13.463 MWh), seguido de um aumento de 338.000 MWh em 2018. Nos dois anos seguintes houve grandes saltos na emissão, atingindo-se a marca de 2.500.000, em 2019, e 4.032.294, em 2020. Observa-se que, em 2020, 32,5% dos I-RECs emitidos tinham também a chancela REC Brazil.
O número de usinas capacitadas para a emissão de I-RECs também vem crescendo, saindo de 4, em 2015, para 152 usinas em 2020 [8]. Atualmente, a carga instalada capaz de emitir I-RECs no Brasil é de 12.409MW [9]. Em termos de comercialização, existem 19 empresas registradas como participantes no sistema I-REC, habilitadas a transacionar os certificados.
Atualmente, o comércio de I-RECs vem sendo realizado sob demanda, com o processo de emissão sendo realizado apenas quando já há um comprador interessado. Esse foi o caso do Bradesco, que comprou 1,4 milhão de certificados de energia renovável da AES Brasil em novembro de 2020, para zerar as suas emissões anuais [11].
No estágio atual do mercado nacional não há impedimentos na transação dos certificados, no entanto, o processo de emissão sob demanda pode-se tornar um gargalo à medida em que mais empresas procurem o consumo de energia limpa, como é o caso da Heineken Brasil, que planeja operar 100% com energia renovável até 2023 [12].
Em termos mundiais, o maior mercado de I-RECs está na China, que foi um dos três primeiros participantes do padrão I-REC, criado em 2014. Entre junho de 2019 e maio de 2020 a China transacionou quase 9,5 milhões de I-RECs, contra quase 3 milhões transacionados no Brasil [13].
É importante ressaltar nesse contexto que 51% da energia elétrica consumida no mundo está em um dos 34 países participantes do protocolo I-REC. Se forem contabilizados outros sistemas de contabilização (EACs), pode-se dizer que 90% da energia elétrica mundial está coberta por algum sistema de rastreamento de consumo [14].
No que tange a competição entre diferentes sistemas de contabilização, o I-REC se destaca por ser uma certificação global, não ficando restrita a nenhum país ou região. Deste modo, uma multinacional alemã, por exemplo, pode utilizar um mesmo protocolo para contabilizar o consumo de suas plantas ao redor do mundo. Contudo, em regiões onde diferentes EACs coexistem, deve-se ter um cuidado maior com a dupla contabilização de certificados (contabilizar um MWh duas vezes em diferentes certificações). Apesar da Covid-19, o volume de I-RECs transacionados no mundo, entre junho de 2019 e maio de 2020, teve um aumento de 81% -– com 20 milhões de I-RECs tendo sido transacionados nesse período –, confirmando a tendência de escolha do I-REC como EAC ao redor do mundo [15].
Em nível mundial, o consumo também é puxado pela demanda voluntária de instituições e organizações para lidar com as emissões de ¨Escopo 2¨. Dentre essas iniciativas, pode-se citar o RE100 e o CDP. O RE100 é uma iniciativa que busca atingir uma transição para uma matriz energética 100% renovável [16]. Essa iniciativa conta com 290 empresas-membros que se comprometem a atingir esse objetivo de consumo de energia totalmente renovável em diferentes prazos. Já o CDP é uma organização sem fins lucrativos com o objetivo de ajudar a gerir o impacto ambiental de empresas, investidores, cidades e países ajudando essas entidades na contabilização de suas emissões. Mais de 9.600 empresas ao redor do mundo utilizam-se do sistema do CDP [17].
Tanto o RE100 quanto o CDP são iniciativas importantes que podem ser fatores decisivos para o crescimento do mercado de certificados de energia nos próximos anos, em especial o I-REC.
III. Desafios
Como o objetivo do I-REC é ser uma prova de geração de energia por meio de uma fonte renovável, é importante que o processo de certificação seja baseado no conceito de fonte renovável aceito universalmente e que conte com critérios que inviabilizem que o certificado seja contabilizado mais de uma vez. Para que exista confiabilidade sobre o caráter renovável de uma fonte de energia, devem ser realizados tanto um rígido controle como também auditorias periódicas, que podem gerar uma barreira de custo para pequenos produtores, além de aumentar o custo administrativo para os produtores já existentes – dois desafios a serem superados.
No que se diz respeito à segurança e imutabilidade dos dados, defendemos como solução, a utilização da tecnologia blockchain uma vez que, ao registrar os dados em um sistema descentralizado em blocos, é possível de se garantir a imutabilidade das informações da certificação, ao mesmo tempo em que se consegue rastrear os mesmos dados. Já existem aplicações no mercado de I-RECs que utilizam essa tecnologia, como a Energy Web Chain (EWChain), a rede pública de blockchain para o setor elétrico administrada pela Energy Web Foundation (EWF), sediada na Suíca, da qual a Fohat Corporation, a AES Brasil e a própria I-REC Standard Foundation são organizações signatárias.
A EWChain conta com uma estrutura dedicada só para o registro de certificados, por exemplo, e tem um caso em operação na Tailândia. Naquele país, há uma infraestrutura de mercado de I-RECs baseada no EW Origin (uma das blockchains desenvolvidas pela EWF no âmbito da EW Chain) elaborada pela PTT [18], gerador de energia tailandês. Aqui no Brasil , há o SISREC (Sistema Totum de Emissão de RECs), plataforma eletrônica de registro de certificados do Instituto Totum [19].
No entanto, resta ainda o desafio da porta de entrada no sistema, ou seja, a contabilização dos I-RECs diretamente em medidores inteligentes. Em mercados como o brasileiro, existe um órgão centralizador do mercado – a CCEE – que controla, via medidores conectados, a quantidade gerada por um agente produtor. Porém, é importante que esses medidores sejam seguros, de modo que seu software não possa ser alterado para gerar I-RECs inexistentes, por exemplo. Um hardware seguro deve permitir a auditoria periódica à distância por uma terceira-parte confiável [20], deixando o processo de auditoria mais ágil.
Outro desafio importante em nível nacional é a criação de uma infraestrutura de mercado que permita a comercialização dos certificados de maneira mais ágil e eficaz, possibilitando, inclusive, a compra em tempo real de certificados conforme ocorre o consumo. Deste modo, um carro elétrico poderia ter seu consumo de energia coberto por I-RECs a cada quilômetro rodado, por exemplo, ou um autogerador residencial poderia comercializar seus certificados gerados também em tempo real.
Outro motivo importante para a criação de uma infraestrutura de mercado é que o processo atual é demorado, podendo levar de 45 a 60 dias entre o pedido de emissão de certificado e a aposentadoria (consumo) do mesmo em nome do cliente. Com um mercado aquecido e mais players entrando, essa demora pode servir como um gargalo de oferta de certificados.
Ademais, o processo atual é informatizado, porém, com pouca integração entre o emissor local e o REC Standard Foundation, o que obriga que todas as informações relativas ao processo têm de ser inseridas de maneira manual em duplicidade no sistema de ambas as entidades (a local e a global).
A matriz elétrica brasileira, em 2020, era composta por 83% de energia de fonte renovável segundo dados do Ministério de Minas e Energia [21]. Em 2020, o consumo de energia elétrica no Brasil foi de 473.774 GWh no acumulado de 12 meses até outubro [22]. Já as emissões de I-REC para 2020 foram de 4.032.294 MWh [23], correspondendo a aproximadamente 0,85% do consumo total. Olhando para o elevado fator renovável na matriz elétrica brasileira (83%), percebe-se o enorme potencial ainda inexplorado em termos de I-RECs.
IV. Conclusões
Dado o potencial brasileiro de geração de certificados de energia, aliado à crescente preocupação com as emissões – evidenciadas nos objetivos sustentáveis da ONU e no Acordo de Paris – e com o número crescente de empreendimentos sendo registrados no Instituto Totum –, o Brasil tem potencial para se tornar um grande polo produtor e consumidor de certificados de energia renovável.
Para isso, necessita-se estabelecer uma infraestrutura de mercado que traga agilidade, segurança e liquidez para a emissão, comercialização e uso desses certificados, possibilitando inclusive a sua exportação para entidades de outros países que desejem acessar o mercado brasileiro de certificados. Além disso, uma plataforma de mercado moderna permitirá a eliminação dos gargalos atuais, bem como ajudará na difusão e educação dos players do mercado de energia a respeito dos I-REC.
A blockchain surge como solução tecnológica que atende à demanda de segurança e confiabilidade, podendo ser acessada de qualquer lugar do planeta de maneira descentralizada, abrindo as portas para que o Brasil entre no mapa internacional dos certificados de energia renovável.
Agradecimentos
À AES Brasil pela confiança na Fohat Corporation e à sua equipe de inovação, representada por Julia Rodrigues, que contribui atuando como grandes conhecedores do mercado de energia, profissionais com histórico de relevante contribuição ao mercado de energia e ao mercado de tecnologia. Aos colaboradores da Fohat Corporation, pela grande contribuição na escrita, revisão e publicação deste artigo.
Referências Bibliográficas
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